Mercado de streaming

Com EUA saturados, Netflix usa o Brasil como exemplo para continuar crescendo

A metáfora do touro representar Wall Street não poderia estar mais equivocada. Na realidade, se tem algum animal – existente ou mitológico – que pode definir o mercado financeiro, esse animal é um dragão voraz e bipolar.

Se bem alimentado, ele pode se tornar o seu melhor amigo, quase que como o Banguela da franquia ‘Como Treinar o Seu Dragão’. Porém, se faltar aquilo que ele deseja, por mais exagerado e fora de propósito que seja, o bicho não pestanejará em devorá-lo, sem qualquer cerimônia.

Neste exato momento, é a Netflix que está tomando cuidado para não virar ela mesma o prato principal desse jantar.

Sede da Netflix em Los Gatos, Califórnia (crédito: divulgação / Netflix)
Por anos, a gigante do streaming foi a queridinha dos investidores, sempre entregando um crescimento exponencial no número de assinantes em todo o mundo. Com a pandemia, a partir de março de 2020, esse processo de acelerou. Os investidores de Wall Street se empantufaram com esse delicioso prato, sem dar bola para mais nada.

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Enquanto isso, a Netflix seguiu gastando bilhões com conteúdo. Afinal, a estratégia da empresa é, há alguns anos, ter muitos filmes e séries – feitos para os mais diversos gostos e públicos – em um ritmo de lançamentos vertiginoso, que mantenha o assinante preso e que traga outros novos. Só que a conta – esperada, diga-se – chegou. A Netflix está desacelerando nesse crescimento. Veja bem, disse desacelerando: a plataforma agregou 8,3 milhões de assinantes no último trimestre de 2021, chegando na marca de 222 milhões de membros (como eles gostam de chamar) em todo o mundo. Ótimo, não? Mais ou menos: a previsão era de 8,5 milhões de novos assinantes. O estômago do dragão roncou. Entre sexta e segunda, após a divulgação desses números, as ações da empresa chegaram a cair 30%, recuperando um pouco desse valor para cerca de 23% negativo. Sim, a Netflix perdeu quase um quarto do seu valor de mercado por não ter batido uma meta em 200 mil pessoas. Quer dizer, é mais do que isso: por não conseguir cumprir nem uma meta que era considerada modesta pelos investidores. E olha que a empresa fundada por Reed Hastings está tentando fazer os investidores olharem para o outro lado. No ano passado, lançou uma nova métrica para aferir a audiência dos seus filmes e séries, dando mais ênfase à retenção dos usuários no serviço. Também ficou mais cara em países como o Brasil e México, culminando com o aumento de preço em território americano, na semana passada. Ainda assim, o dragão não quer mudar o seu prato: ele quer novos assinantes, muitos. Quase que como um Smaug, o grande vilão de ‘O Hobbit’, sentado em cima do tesouro no interior de Erebor.
Smaug é o ganancioso dragão da saga ‘O Hobbit’ (crédito: divulgação / MGM / Warner Bros.)

Netflix e o exemplo brasileiro

O desafio, aqui, é a saturação no mercado. Nos Estados Unidos e Canadá, por exemplo, a empresa tem 75 milhões de assinantes. Pensando que os dois países possuem, juntos, cerca de 100 milhões de famílias, é possível imaginar que a Netflix alcançou quase que o teto, ainda mais considerando a maior competição pelo bolo das pessoas e a facilidade que é assinar ou desassinar um streaming. É por isso que a gigante do streaming quer, neste momento, crescer no resto do mundo – e o Brasil é o grande exemplo para outros mercados. Isso mesmo: o sucesso deles no nosso país é um caso de sucesso a ser replicado. Neste momento, a batalha do streaming está sendo disputada na Índia. Segundo maior país do mundo em população, acaba sendo o maior mercado para as empresas ocidentais simplesmente porque a China possui rígidas regras internas, que impedem a operação por lá. Porém, os indianos são extremamente ávidos por conteúdo local (Bollywood está aí para não nos deixar mentir), mas também possuem um menor poder aquisitivo. Resumindo: Netflix e seus concorrentes precisam investir pesado em produções locais, enquanto o retorno financeiro é menor. “Se não alcançarem o resultado esperado, vocês consideram de alguma forma diminuir o gasto com conteúdo na Índia?”, provocou Nidhi Gupta, gerente de portfólio na Fidelity Investments, durante a última conferência de anúncio de resultados da Netflix, realizada na quinta passada (20). “Eu acredito que demoraria muito tempo antes de ajustarmos isso de forma material, porque, na nossa experiência no Brasil, foi brutal nos primeiros anos. Nós achamos que nunca ia empatar os custos com a receita. Pelo que sei, nós conseguimos”, respondeu Hastings, que, além de fundador, é co-CEO da empresa. Pois é: a Netflix investe em conteúdo brasileiro há alguns anos – ainda que não no mesmo volume que o indiano e o coreano, por exemplo. Nesse período, a empresa cresceu bastante em nosso território, atraindo muitos assinantes. Ainda que não divulgue números por país, é possível imaginar que algo como quase a metade dos quase 40 milhões de assinantes da América Latina venham daqui. “Nós estamos ficando melhores com nosso conteúdo local no Brasil e no México e daí em diante”, adicionou Spencer Neuman, chefe financeiro da empresa, em outro momento da conferência. “Então tem muito mais para vir, mas o fundamental é não mudar a estratégia.”
‘Confissões de uma Garota Excluída’ é um dos recentes filmes brasileiros da Netflix (crédito: divulgação / Netflix)
Curiosamente, no detalhamento por região do mundo, não é a da Ásia-Pacifico que tem a menor receita por assinante, muito porque o preço baixo da Índia é compensado por lugares com maior margem, como Japão e Austrália. O valor menor é justamente aqui na América Latina, onde países – principalmente o maior, o Brasil – sofrem com desvalorização das moedas frente ao dólar. Porém, isso (ainda) é detalhe. Na prática, o que a Netflix quer é repetir em todo o mundo não a competição voraz em um mercado fortemente preparado como o norte-americano, mas o que fez no nosso país: um crescimento vertiginoso, que às vezes nem a própria empresa conseguia explicar, frente à grupos de mídia tradicionais que pouco souberam migrar para o streaming. Um oceano azul, como gostam de dizer, veja só, os investidores. O único problema é que a Índia não é o Brasil: com um grande número de plataformas, preços irrisórios e muito conteúdo local, repetir a estratégia lá demandará muito esforço e tempo. Sem falar que a empresa não pode se esquecer de também trazer grandes sucessos internacionais, que não só expandam as bases nos mercados pelo mundo, mas que mantenham os norte-americanos com a assinatura ativa – nesse sentido, as continuações de ‘Alerta Vermelho’ e ‘Entre Facas e Segredos’, por exemplo, já estão garantidas. O próximo passo, se nada der certo? Desestimular de maneira mais contundente o compartilhamento de senhas entre pessoas que não moram na mesma casa. A atitude, extremamente impopular, já está sendo testada com alguns usuários. Enquanto isso, Reed Hastings e seus amigos esperam que o dragão de Wall Street se contente com um lanchinho modesto no lugar do banquete. Até porque, agora, a previsão é crescer em um ritmo bem menor não só do que em 2020, mas do que foi feito em 2021, que já foi um ano “fraco” na visão do mercado financeiro. Pena que, na vida real, não existem treinadores de dragões como o Dentuço, não é mesmo? Mas de Smaugs, ah, disso tá cheio…

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Renan Martins Frade

Jornalista especializado em cinema, TV, streaming e entretenimento. Foi por 11 anos editor do Judão e escreveu para veículos como UOL, Superinteressante e Mundo dos Super-Heróis. Também trabalhou com a comunicação corporativa da Netflix. Foi editor-chefe do Filmelier.

Escrito por
Renan Martins Frade

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