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‘Pinóquio’, o remake que queria ser um filme de verdade

Quando Carlo Collodi escreveu ‘As Aventuras de Pinóquio’ (inicialmente como a série ‘História de uma Marionete’ para o jornal italiano ‘Giornale per i bambini’), era uma fábula simples – embora caótica e um pouco sádica para os padrões atuais – com uma moral muito inusitada: as crianças devem ser boas, estudar e se esforçar, para evitar os perigos da desobediência e do hedonismo.

Para o que se tornaria apenas o segundo longa-metragem de animação em seu agora massivo cânone, Walt Disney destilou uma moral ainda mais simples entre as aventuras dispersas e violentas do boneco. Na primeira versão da Disney, Pinóquio aspira a ser um menino de verdade. Para conseguir isso, a Fada Azul diz a ele que ele deve provar ser sincero, corajoso e generoso.

É uma narrativa que alguns estudiosos (como M. Keith Booker no livro ‘Disney, Pixar, and the Hidden Messages of Children’s Films’) consideram mais alinhada à consciência capitalista, pois seu protagonista deve ser trabalhar para provar seu valor e ascender em seu status como um “menino de verdade”.

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Graças ao seu apelo a toda a família e à magia expansiva desse capitalismo, esta versão do conto é a mais conhecida em todo o mundo. Seus méritos artísticos, para a época, eram consideráveis: até hoje, ainda é considerado um dos melhores filmes de animação da história. Um clássico, mesmo que também seja um dos filmes mais divisivos entre os fãs do Mickey Mouse. Por que, então, refazer um clássico? Essa questão volta à tona toda vez que a Disney lança uma nova produção de sua aparente missão de fazer remakes em imagem real (os famosos live-action) de cada uma das produções em seu cânone animado.
Mais um dia dia, mais um remake live-action de um clássico da Disney (Crédito: Divulgação/Disney)

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Existem poucas justificativas convincentes para fazer um remake. O mais óbvio é quando um filme fracassado recebe uma nova oportunidade. Mas, como sabemos, você não conserta o que não está quebrado. A segunda justificativa é tecnológica: se as técnicas da época não fizeram jus ao filme original, há quem considere razoável refazer o filme com tecnologia mais recente. Mas, novamente, a versão de 1940 é uma referência para a animação clássica desenhada à mão, mesmo que sua narrativa seja um pouco rudimentar. Então a terceira é a atualização: trazer uma história clássica para outro contexto, reinterpretá-la com um olhar contemporâneo ou dizer algo novo. O que o remake de ‘Pinóquio‘ – que acaba de estrear no Disney+ – nos traz de novidade? Deixemos a questão pendente, por enquanto. Para megacorporações midiáticas como a Disney, há uma quarta justificativa: dar uma nova camada de tinta a uma propriedade intelectual e extrair ainda mais lucros dela (especificamente neste caso, atrair mais assinantes para o Disney+, onde o clássico animado também pode ser visto). Esta parece ser a principal – se não a única – motivação por trás deste remake de Pinóquio, tão pouco inventivo em seu design, que seu personagem-título é uma cópia carbono da versão animada, mas com olhos pintados, planos e opacos.

Um ‘Pinóquio’ que se envolve nos fios da propriedade intelectual

Para esses remakes da Disney, a devoção aos clássicos originais é uma faca de dois gumes. Por um lado, estes são tão queridos pelo público, que as novas versões praticamente se vendem. Mas, por outro lado, são filmes tão icônicos que o estúdio não se atreve a desviar de praticamente nada daquilo que o público já conhece. O resultado é um filme que nos diz essencialmente a mesma coisa que o seu antecessor: o carpinteiro Gepeto (aqui interpretado por Tom Hanks, com emoção pungente até começar a exagerar) cria uma marionete e faz um desejo a uma estrela. Como resultado, a Fada Azul (Cynthia Erivo) aparece, dá vida ao boneco e atribui-lhe uma consciência na forma do Grilo Falante (voz de Joseph Gordon-Levitt, em uma imitação daquilo que Cliff Edwards fez na versão de 1940).
A história deste ‘Pinóquio’ é quase idêntica à original, com acréscimos desnecessários (Crédito: Divulgação/Disney)
A partir daqui, o remake dirigido por Robert Zemeckis (‘Forrest Gump: O Contador de Histórias‘) segue quase o mesmo caminho que já conhecemos do clássico animado. Seduzido pela perspectiva da fama, Pinóquio se junta a um espetáculo de marionetes de Stromboli (Giuseppe Battiston), foge, tenta voltar para o pai e acaba na Ilha dos Jogos, foge novamente e vai procurar o pai no mar. Como cineasta consagrado e contador de histórias visual competente, Zemeckis entrega um produto quase sempre correto: as tomadas geralmente são adequadas a momentos de ação e emoção, e há sequências visualmente impressionantes (Monstro – a besta do mar -, em particular, impressiona nessa performance). Mas o roteiro de ‘Pinóquio‘, do próprio Zemeckis e de Chris Weitz (‘Cinderela‘), é o que acaba emaranhado pelas limitações do material de origem. Em um desejo vazio de contar algo relativamente novo sem nenhuma razão válida, acrescentam-se cenas originais (há até novos números musicais) ou prolongam-se outras, mas sem em nada contribuir para o enredo. Adiciona alguma coisa ver o cocheiro cantar que levará as crianças à Ilha dos jogos? Absolutamente não. ‘Pinóquio’ também sofre com o abuso de CGI, que tantos outros projetos da Disney de grande orçamento sofrem. Para cada cena de tirar o fôlego como a aparição de Monstro, existem cenários como a própria Ilha dos Jogos, tão saturada com imagens geradas por computador que, em vez de impressionar, simplesmente perdem o brilho. Essa sequência, como sabemos, termina com a horrível transformação de uma criança em burro. Em sua versão original, é uma das cenas mais arrepiantes de qualquer filme da Disney, cujo poder está no que não nos mostra: só vemos Pinóquio completamente aterrorizado, enquanto as sombras sugerem o horror do que está acontecendo. A nova versão opta pelo caminho inverso, recorrendo ao CGI para nos mostrar a mudança. A cena perde todo o seu poder.
Isso também acontece na nova versão, mas é bem mais impressionante na versão do ‘Pinóquio’ de 82 anos atrás (Crédito: Divulgação/Disney)
Há, no entanto, uma tentativa de recontextualizar a história. Aqui nos é sugerido que a razão de Gepeto para criar Pinóquio é preencher o vazio deixado por um filho que ele perdeu. A jornada do fantoche para provar seu valor e ser um menino de verdade nasce de seu desejo de satisfazer o desejo de seu pai. A motivação para essa mudança não é clara a princípio, e só começa a aparecer quando, juntando-se à tropa de Stromboli, Pinóquio conhece Fabiana (Kyanne Lamaya), uma nova personagem. Sua história nunca é explicada, mas fica implícito que ela é uma artista frustrada pela deficiência, refugiando-se em marionetes. A personagem não tem tempo de tela o bastante para ter um efeito suficiente no que parece ser uma mensagem de aceitação. Essa intenção da história só fica evidente ao chegar a uma conclusão que rompe fundamentalmente tanto com o final da versão Disney, quanto com a história de Collodi. É tão repentino quanto desconcertante, já que nos é fornecido muito pouco ao longo da filmagem para justificá-lo. O que só prova que não é necessário fazer remakes apenas por fazê-los. Ter algo realmente interessante para dizer – e dizer bem – sempre terá mais valor quando se trata de refazer um filme, do que simplesmente espremer uma propriedade intelectual em live-action. Há tantos aspectos caricaturais aqui, que nós nos perguntamos por que fazer dessa forma em primeiro lugar. Haverá quem assine ao Disney+ para ver esta versão, mas a verdade é que não tem o desejo de inovação que o original tinha (que também está na plataforma). Há mais inventividade na versão italiana que Matteo Garrone fez alguns anos atrás. Puxa, há bem mais coração no trailer de dois minutos da versão de Guillermo del Toro. Aqui, acontece como na loja do Gepeto: todos os relógios cuco, artesanatos da versão animada dos anos 1940, são substituídos por acenos às décadas de personagens da Disney que surgiram desde então. Nada além de referências gratuitas, vazias e cinicamente desprovidas de humor. Não há sinceridade aqui: a Fada Azul optou por deixar esta produção oca e sem vida, como um mero pedaço de madeira sem alma.

‘Pinóquio’ está disponível no Disney+. Se você quiser saber mais sobre o filme, assistir ao trailer ou encontrar o link para conferir online, clique aqui.

Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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