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Crítica de ‘Pobres Criaturas’: Mulheres sonham com cães-patos elétricos?

Ao falar sobre qualquer dupla de diretor e ator consagrados, e ainda mais durante a temporada de premiações, é fácil se deixar levar pela emoção dos consensos. Será que tal filme é um dos “melhores” do ano (o que quer que isso signifique)? Será que é realmente tão virtuoso e espetacular como dizem? Com Pobres Criaturas (Poor Things), que estreia nos cinemas brasileiros em 1 de fevereiro, as respostas são complicadas.

Em sua segunda colaboração, após A Favorita, com o roteirista Tony McNamara e a atriz Emma Stone (que também atua como produtora desta vez), o veterano cineasta grego entrega uma adaptação do romance homônimo do irlandês Alasdair Gray. Depois de uma primeira impressão impressionante, o resultado é percebido como ambicioso, singular e espetacular. No entanto, é também tão delirante em sua grandiosidade que, para ser sincero, às vezes tropeça em tudo o que quer dizer, fazer e abranger.

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O que é inegável, no entanto, é que Emma Stone é a alma e o coração de Pobres Criaturas. Ela se consagra não apenas como algo que não pode ser descrito como “lenda”, mas como “fera”, em um papel tão lúdico quanto cheio de nuances e transformações que exigem que a atriz se despoje de qualquer pudor.

Ficção científica e libertação feminina em Pobres Criaturas

Embora o filme mude a narração testemunhal do romance original para uma narrativa linear, a premissa é mais ou menos a mesma. Em uma Londres vitoriana retrofuturista, o cientista distorcido Godwin Baxter (Willem Dafoe), também conhecido como “God” (ou Deus, em inglês), realiza experimentos macabros em nome do conhecimento. Sua casa é habitada por híbridos extravagantes: cães com cabeça de pato, patos com cabeça de cachorro e criaturas do tipo. Um dia, uma calamidade se transforma em sua boa fortuna: uma mulher grávida (Emma Stone) se joga de uma ponte para tirar a própria vida no rio. God recupera o cadáver, retira o bebê não nascido, transplanta o cérebro para o crânio da mãe e reanima o corpo, como o Dr. Frankenstein. O ser renascido, com o cérebro de um bebê no corpo de uma mulher adulta, é chamado de Bella Baxter.
Em Pobres Criaturas, Bella Baxter começa, essencialmente, como uma mulher com mente de bebê (Crédito: Searchlight Pictures)
Como era de se esperar, Bella existe e age como um bebê, cuja mente cresce, amadurece e evolui a um ritmo constante. Para documentar seu progresso, God contrata como assistente seu aluno, Max McCandles (Ramy Youssef). À medida que a mulher/criança continua seu desenvolvimento, incluindo a descoberta de sua própria sexualidade, God a promete em casamento a McCandles. Tudo progride conforme o plano do cientista até que entra em cena o libertino e mulherengo advogado, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). Bella, agora mais parecida com uma jovem ávida por independência para explorar o mundo e sua sexualidade, decide fugir com ele. Por meio de suas evidentes referências narrativas ao terror e ficção científica de Frankenstein, mas também por um design de produção ancorado no steampunk, Pobres Criaturas dialoga diretamente com outras obras desse último gênero. Especificamente, poderíamos dizer, com o que costuma ser o tratamento de personagens femininas em várias de suas obras cinematográficas marcantes, como Metrópolis ou Blade Runner (esta última descendente direta da primeira), para citar as duas referências mais claras. Tanto a androide Maria (Brigitte Helm) de Fritz Lang quanto a replicante Rachael (Sean Young) de Ridley Scott são, em suas respectivas narrativas, criações e ferramentas de homens que buscam esticar ou manipular os limites científicos, sociais, morais e até políticos de seus mundos. Em nosso mundo, esses personagens femininos são percebidos como meros utensílios, subordinados aos objetivos de seus criadores ou aos interesses românticos de seus salvadores.
Pobres Criaturas tem algo a nos dizer sobre as mulheres na ficção científica (Crédito: Searchlight Pictures)
Em Pobres Criaturas, o ato de transplantar o cérebro de um bebê para o corpo de sua própria mãe, sexualmente madura, serve a um propósito metafórico na narrativa. Bella é, essencialmente, uma mulher que aprende a controlar suas faculdades físicas, já plenamente desenvolvidas, sem internalizar a culpa e os tabus da moral sexual de sua época. Com um discurso firmemente enraizado na libertação feminina, Lanthimos e McNamara ironizam sobre as contradições – e a fragilidade – dos preceitos patriarcais que, desde o início até o final de sua jornada, tentam impor a Bella, de alguma forma, seu “pai”, seu noivo e seu amante, entre outros personagens. E muito tem sido dito sobre o conteúdo sexual de Pobres Criaturas, direto e explícito. Stone, protagonista e produtora, defende as cenas como “honestas” e “fiéis à experiência de Bella”. Poderíamos analisar, por um lado, nossa relação – frequentemente moralizante – com esse tipo de imagens, especialmente quando representam a sexualidade feminina de maneira aberta. Por outro lado, em uma indústria como a de Hollywood, poderíamos questionar se não há certa sensacionalização e até exploração em Pobres Criaturas, especialmente no que diz respeito a essa obsessão coletiva pela “temporada de premiações” e a “corrida pelo Oscar”. Ou será que também estamos moralizando isso? Assim, o discurso de Lanthimos começa a se diluir. Certos aspectos de sua grandiloquência audiovisual também se dissipam. Sua fotografia já habitualmente distorcida, com enquadramentos que exaltam sua ácida ironia, está presente. No entanto, a direção de arte, embora consiga infundir no público o mesmo espanto infantil que Bella sente, não transcende esse objetivo inicial. Ao longo de uma hora, torna-se pura excentricidade visual vazia. É fascinante de se observar, é preciso admitir.
Depois de um tempo, a excentricidade visual de Pobres Criaturas torna-se vazia (Crédito: Searchlight Pictures)
Mas em sua ambição, o roteiro de McNamara aborda temas sem conseguir amarrar todas as pontas. A curiosidade e crueldade de God, ao mesmo tempo cientista e pai criador, ficam em um vago comentário que poderia explorar mais os valores religiosos e paternalistas, ou a busca patriarcal sobre o mundo patriarcal. Fala-se, mas apenas superficialmente, sobre o socialismo e o poder do trabalho sexual feminino. Contudo, a questão fica reduzida a um par de diálogos. Pobres Criaturas está tão longe de ser um filme ruim quanto de ser uma obra-prima. É ambicioso e caótico, ácido e penetrante, mas disperso. Brilha menos por sua excentricidade delirante e mais pelo trabalho de uma Emma Stone que se entrega completamente, sem medos ou tabus. E embora seja uma jornada extremamente divertida, suas reflexões também não vão muito além da campanha de rebranding mais bem-sucedida de 2023.

Pobres Criaturas chega aos cinemas em 1 de fevereiro no Brasil.

Texto originalmente publicado na versão mexicana do Filmelier.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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