Como ‘No Ritmo do Coração’ se tornou favorito ao Oscar de Melhor Filme
Quando a temporada de premiações de 2022 começou a ganhar forma, com os indicados nos principais prêmios sendo revelados, criou-se logo uma sensação de que ‘Ataque dos Cães’ seria o grande vencedor. Afinal, além de ser elogiado por crítica e público, o faroeste conta com a premiada Jane Campion (‘O Piano’) na direção. Mas, na reta final, o filme da Netflix perde força para um concorrente inusitado: o doce ‘No Ritmo do Coração’.
Dirigido pela pouco conhecida Sian Heder (‘Little America’), o longa-metragem é daqueles “oscarizáveis” improváveis. Além de ser remake do filme francês ‘A Família Bélier’, o filme tem um tom leve, que se aproxima da comédia em muitos momentos, para falar sobre a jornada de uma garota (Emilia Jones) que tem pais e irmão surdos. Na luta do dia a dia, surgem os dilemas, as dores, os medos e os preconceitos de terceiros.
Com três indicações ao Oscar (Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro Adaptado), o filme estava bem cotado apenas para a categoria de atuação com o excepcional Troy Kotsur. No entanto, ganhou fôlego redobrado na reta final ao vencer o Sindicato de Atores (SAG), de Produtores (PGA) e de Roteiristas (WGA). É a “santa trindade” da temporada de premiações, com seus prêmios geralmente coincidindo. É só dar uma olhada nos últimos dez anos. Desde 2012, o PGA, o melhor termômetro para Melhor Filme, acertou oito vezes – só errou com ‘1917’, no Oscar de ‘Parasita’ e com ‘A Grande Aposta’, na imprevisível premiação de ‘Spotlight’. Dar o troféu para ‘No Ritmo do Coração’ neste momento é mostrar que o filme da Apple não só está vivo na competição pelo “careca dourado”, como também reafirma que ele é o favorito da temporada.
De Sundance até o Oscar
Essa movimentação, porém, não aconteceu do nada. Afinal, ‘No Ritmo do Coração’ não é exatamente um azarão. No comecinho de 2021, o longa-metragem foi consagrado como o grande vencedor de Sundance e saiu de lá como uma coroa: naquele momento, o filme foi vendido por US$ 25 milhões à Apple, no valor mais alto já negociado no festival até então. Ao desembolsar esse valor, a Apple mostrou que o filme era uma aposta grande para a empresa, iniciante no universo do streaming com Apple TV+. Com direitos globais, com exceção do Brasil (onde o filme está disponível no Amazon Prime Video), México, Argentina e Espanha, a empresa fez um marketing tímido, mas eficaz, convencendo as pessoas de que o filme era leve e sensível – algo que, no pós-pandemia, chamou a atenção. Funcionou a ponto de conquistar as três indicações, incluindo a da categoria principal. E o que está acontecendo agora para o filme ganhar tamanho protagonismo? Oras, bem simples: as pessoas estão assistindo. Quando foi lançado na plataforma da Apple, ‘No Ritmo do Coração’ teve um marketing apenas para levar o longa para um circuito reduzido. Depois, quando já estava indicado, a divulgação do título ganhou mais força. Os votantes estão assistindo ao filme, incentivados por propagandas e pela exposição natural do Oscar. E, o mais importante, estão gostando do que veem. Além disso, há algo que podemos chamar de “fator Sam Elliot”. O ator americano, recentemente, deu uma declaração muito infeliz ao dizer que ‘Ataque dos Cães’ é um “pedaço de merda” e que o filme “eviscera o mito americano” ao mostrar cowboys que mais parecem dançarinos andando sem camisa pelo cenário. Também detonou Jane Campion, a diretora neozelandesa do longa, questionando o que ela sabe do Oeste americano. Pode parecer algo individual, apenas a opinião de alguém que ficou parado no tempo. Mas, lembre-se: apesar de avanços recentes, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é formada principalmente por homens brancos, principalmente vindos dos Estados Unidos. Apesar do prêmio fora da curva com ‘Parasita’, foi essa mesma Academia que premiou o controverso ‘Green Book’ e tirou o prêmio de ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ – outro filme de sexualidade no Oeste. Por fim, e não menos importante, o sistema de votação na categoria de Melhor Filme é diferente. Nele, os integrantes da Academia colocam os dez indicados na sua ordem de preferência. Por isso não é escolhido necessariamente o mais votado em primeiro lugar, mas sim o de maior consenso. Nisso, um longa-metragem que é muito escolhido como o segundo ou terceiro melhor do ano pode superar um com mais votos em primeiro lugar, mas que também ficou entre os piores na escolha de muitos eleitores.
Por esse motivo, é mais fácil ‘Ataque dos Cães’ se perder nos extremos de “melhor” ou “pior” dos indicados, enquanto que o “fofo” ‘No Ritmo de Coração’ seja posicionado entre os três primeiros pela maioria – inclusive por aqueles que preferiram o longa de Jane Campion.
‘No Ritmo do Coração’ contra a Netflix
No entanto, talvez não seja apenas o marketing acirrado da Apple ou o “fator Sam Elliot” que está bagunçando essa competição, mas sim quem está por trás da distribuição de ‘Ataque dos Cães’: a Netflix. Depois das esnobadas de ‘Roma’ e ‘O Irlandês’, parecia que não haveria saída em 2022. Tudo indicava que a Netflix enfim iria quebrar a maldição de ser preterida e, vencendo o preconceito contra o streaming, ser laureada com o Oscar. Só que, como estamos vendo agora, parece que parte dos votantes da Academia ainda não está pronta para esse salto. Ainda que ‘No Ritmo do Coração’ também tenha sido lançado no streaming, o filme nasceu em um festival tradicional e só depois foi comprada pela gigante da tecnologia – que, vale dizer, é mais lembrada por seu iPhone do que por seu streaming. Enquanto isso, ‘Ataque dos Cães’ é um projeto que também rodou festivais (inclusive sendo premiado em Veneza), mas tem seu embrião na Netflix. A marca, além disso, continua sendo uma ameaça para uma parte considerável dos votantes, todos profissionais do cinema, que vê o streaming como a morte da sétima arte como conhecemos hoje. Mesmo com esforços, a empresa parece continuar com os mesmos estigmas. Não dá para dizermos se é justo ‘No Ritmo do Coração’ levar esse Oscar ou não – são extremamente injustas, aliás, as comparações com ‘Green Book’. O fato é que se o longa da Apple levar, a Academia mostrará que talvez não tenha evoluído tanto quanto pensávamos, mantendo os mesmos medos de premiar filmes com temática LGBTQIA+ ou que nasceram no streaming. E, assim, esperamos mais um ano para esperar alguma mudança.
Jornalista especializado em cultura e tecnologia, com seis anos de experiência. Já passou pelo Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites, sempre falando de cinema, inovação e tecnologia. Hoje, é editor do Filmelier.