De ‘A Pequena Sereia’ a ‘Peter Pan e Wendy’ e ‘Pinóquio’: o problema com os remakes da Disney De ‘A Pequena Sereia’ a ‘Peter Pan e Wendy’ e ‘Pinóquio’: o problema com os remakes da Disney

De ‘A Pequena Sereia’ a ‘Peter Pan e Wendy’ e ‘Pinóquio’: o problema com os remakes da Disney

Entre ‘Pinóquio’ no final de 2022 e ‘A Pequena Sereia’ em 2023, a Disney lançou três remakes em live-action em menos de um ano, continuando uma tendência longa e problemática

Lalo Ortega   |  
25 de maio de 2023 17:04

“Continuamos avançando, abrindo novas portas e fazendo coisas novas, porque somos curiosos e a curiosidade ainda nos leva por novos caminhos”, diz uma frase atribuída a Walt Disney, o homem que co-fundou em 1923 o que se tornaria um dos gigantes da mídia deste século e do passado. Hoje, mais de 50 anos após sua morte, lançamentos como o remake de A Pequena Sereia confirmam o que já se sabe: há muito tempo a curiosidade e a novidade deixaram de ser o vento nas velas desse gigantesco e bilionário navio.

É uma tendência que já dura há muito tempo. Começando com o lançamento de Alice no País das Maravilhas de Tim Burton em 2010, o Mickey Mouse encontrou uma mina de ouro em refazer seus clássicos animados – muitos deles monólitos da própria cultura popular – como longas-metragens com atores reais, ou live-action. Algumas mudanças aqui e ali na trama, algumas novas músicas, um grande orçamento dedicado a efeitos visuais e estrelas renomadas, e pronto: empacotados como filmes novos.

Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, marcou o início dessa tendência (Crédito: Disney)

É uma tendência que, para o bem e para o mal – talvez mais para o último -, tem se acentuado nos últimos anos. Entre o final de 2022 e o que temos até agora em 2023, o estúdio lançou Pinóquio e Peter Pan e Wendy (ambos lançados diretamente no Disney+) além de A Pequena Sereia.

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Outros anos foram piores: entre os cinemas e a plataforma de streaming da empresa, 2019 viu os lançamentos de Dumbo, A Dama e o Vagabundo, Aladdin e O Rei Leão (isso se não contarmos Malévola: Dona do Mal, sequência do que poderia ser considerado um remake de A Bela Adormecida).

Além de ser muito triste ver uma das máquinas criativas mais poderosas de Hollywood presa no “modo de reciclagem”, a tendência dos remakes em live-action da Disney, perpetuada por ‘A Pequena Sereia’, tem outros problemas.

Primeiro: por que fazer um remake?

É importante esclarecer que fazer um remake não é necessariamente algo ruim ou medíocre em si. Toda forma de arte recorre, em maior ou menor medida, à inspiração e reinterpretção do que veio antes. O cinema não tem motivo para ser diferente.

Então, por que fazer um remake? Não pode haver apenas uma razão, mas podemos dizer que algumas são mais válidas do que outras. Por exemplo, a obra-prima de Akira Kurosawa, Os Sete Samurais, eventualmente foi “ocidentalizada” e refilmada como Sete Homens e um Destino.

Uma adaptação para as sensibilidades ocidentais que se tornou um vício. Ao longo das décadas, o público americano parece ter desenvolvido uma alergia aguda, crônica e potencialmente fatal ao ato de ler legendas, e os estúdios de Hollywood parecem mais dispostos a investir em um remake quase idêntico de um filme estrangeiro do que perder dinheiro tentando convencê-los. Não é exatamente a razão mais criativa ou inspiradora para refazer um filme que pode ter todo o mérito do mundo.

Um remake, portanto, deveria trazer algo novo (estético ou narrativo) à obra original, dizer algo sobre ela ou se distanciar o suficiente de sua fonte para se sustentar por si só. Às vezes, a ponto de ofuscar seus predecessores. Como exemplo, temos os casos de A Mosca, de David Cronenberg, e O Enigma do Outro Mundo, de John Carpenter, para citar dois casos comerciais e conhecidos.

Os remakes da Disney, como A Pequena Sereia, em termos gerais, parecem ser motivados por duas coisas: o vazio exercício técnico de recriar um conto animado com personagens de carne e osso. Isso é justificado, por sua vez, pelo segundo motivo, mas o mais importante para uma empresa midiática bilionária: os lucros.

Disney reza ao deus da Propriedade Intelectual

A Marvel forneceu um vasto catálogo de personagens prontos para empacotar e vender (Crédito: Marvel Studios)

Não poderíamos culpar ninguém por não se lembrar da última vez que a Disney lançou um filme totalmente original, que não fosse um remake ou uma sequência de algo que eles já haviam feito antes. A empresa raramente se arrisca, e quando o faz, os resultados também não foram os melhores (falaremos mais sobre isso em breve).

A enésima continuação do Universo Cinematográfico da Marvel, mais um spin-off de Star Wars, uma sequência ou remake de algum clássico animado da Disney. Exceto por algumas exceções, essas são as produções com as quais a Disney – o estúdio cinematográfico mais poderoso e lucrativo entre as chamadas majors – preenche nossas telas, tanto no cinema quanto em casa. E eles fazem isso porque funciona, o que, novamente, é um assunto para depois.

Se olharmos os 100 anos de história da Disney como estúdio cinematográfico, isso é mais uma anomalia do que a norma. As sequências são comuns em Hollywood, é claro – se você quer ganhar dinheiro, a lógica dita repetir o que funciona -, mas a Casa do Mickey Mouse parecia particularmente avessa a elas. Elas só começaram a aparecer no catálogo da Disney nos anos 90, e geralmente eram lançadas exclusivamente em vídeo.

Claro, a animação deixou de ser um processo tão artesanal há bastante tempo, facilitado pela magia da computação. E o argumento de apostar na originalidade não foi ajudado por um período de fracassos de bilheteria durante os anos 2000, logo após o chamado “Renascimento da Disney” (alguém sequer se lembra de Nem que a Vaca Tussa?)

Em resposta a isso, até 2012, a Disney já havia adicionado à sua carteira a Pixar, a Marvel Studios e a Lucasfilm. A aquisição da Marvel foi justificada pelo mandamento de um dos grandes deuses midiáticos do século XXI: o “conteúdo”. “Acreditamos que adicionar a Marvel ao portfólio de marcas exclusivas da Disney trará oportunidades significativas de crescimento e criação de valor a longo prazo”, afirmou o então CEO da Disney, Bob Iger.

“A Disney é o lar perfeito para a fantástica biblioteca de personagens da Marvel, dada sua habilidade comprovada de expandir a criação de conteúdo e negócios de licenciamento”, declarou o CEO da Marvel, Ike Perlmutter.

A estratégia era clara: apostar em propriedades intelectuais já conhecidas e testadas, e criar produções em torno delas para ter maior probabilidade de sucesso.

O que os remakes da Disney fazem bem

Os clássicos animados da Disney logo se tornaram parte dessa estratégia, na forma de remakes. Afinal, assim como Luke Skywalker e Capitão América faziam parte do imaginário coletivo décadas antes de serem adquiridos pelo Mickey Mouse, o mesmo poderia ser dito sobre títulos como A Pequena Sereia, Pinóquio e Cinderela, clássicos do cinema animado por direito próprio.

Isso significa que todos os remakes da Disney são produções medíocres e sem valor? É tentador afirmar isso, pois muitos deles realmente o são. Mas seria uma generalização muito grosseira e injusta para aquelas poucas reinvenções que, pelo menos, tentam adicionar algo novo à fórmula.

A Pequena Sereia e Peter Pan e Wendy: modernizando o conto

Mesmo que, superficialmente, A Pequena Sereia em live-action siga os mesmos pontos narrativos de sua predecessora, ela faz algumas modificações pontuais que modernizam a história para as sensibilidades atuais e mais conscientes.

Nesta versão, Ariel (Halle Bailey) não é mais uma princesa passiva que comete um erro e outros resolvem sua vida. Sua relação com Eric (Jonah Hauer-King) não é apenas um mero romance, mas um vínculo construído por uma genuína curiosidade pelo mundo que ambos têm em comum.

Cena do filme A Pequena Sereia
Há pontos positivos neste remake da Disney (Crédito: Disney)

É claro que a nova versão de A Pequena Sereia tem muitos problemas, incluindo a evidente falta de originalidade (outro assunto que merece sua própria análise). Mas pelo menos tem a virtude de tentar modificar a narrativa para apresentar modelos positivos ao público infantil atual. O mesmo pode ser argumentado sobre Peter Pan e Wendy, que incorpora um subtexto mais interessante à história por si só sucinta do clássico animado.

Dirigido por David Lowery – o autor por trás de A Ghost Story e A Lenda do Cavaleiro Verde, que adotou uma mentalidade de “um para eles, um para mim” para navegar entre a cena independente e a indústria hollywoodiana – o remake do Disney+ coloca Wendy (Ever Anderson) em destaque, não Peter (Alexander Molony), lidando com a inevitabilidade do passar do tempo. Em vez de ser apenas um filme de aventura, torna-se uma fábula sobre abraçar o fato de crescer e enfrentar o futuro.

A Pequena Sereia e Peter Pan e Wendy mostram que sim, há espaço para propostas. No entanto, o principal obstáculo para que esses remakes da Disney sejam mais propositivos é a própria Disney e seu enorme legado.

Pinóquio: quando a Disney cai sob seu próprio peso

Por outro lado, há remakes como Pinóquio. Esta reinvenção dirigida por Robert Zemeckis fracassa não por falta de propor coisas novas, pois possui várias adições. Seu fracasso se dá pela tensão entre a coerência de suas modificações à história original e sua fidelidade cega a ela. Para evitar spoilers, basta mencionar a concepção equivocada de “menino de verdade” no final do filme.

'Pinóquio', o remake que queria ser um filme de verdade
Pinóquio é um dos muitos remakes incongruentes da Disney (Crédito: Disney)

Essa mesma tensão se reflete na estética dos novos filmes, que buscam ser fiéis à expressividade caricatural das originais, mas ao mesmo tempo parecerem “realistas”.

E talvez esse seja o fardo que impede os remakes da Disney de serem algo realmente valioso. As originais são referências tão monolíticas, tão presentes no imaginário coletivo, mesmo décadas após seus respectivos lançamentos – algo que a empresa garantiu ao longo das eras do VHS, DVD, Blu-ray e streaming -, que fazer algo minimamente diferente parece ser um tabu (ou muito “fora da marca”, em termos da sagrada bíblia do marketing).

Pinóquio, que compartilhou seu ano de lançamento com a versão infinitamente mais original de Guillermo del Toro, é a manifestação perfeita do problema. Exceto pelas modificações narrativas incoerentes e muito questionáveis, o design de produção e as atuações são concebidos para emular a animação, e apenas isso. O design de Pinóquio e a atuação de Joseph Gordon-Levitt como Grilo Falante são apenas cópias do que veio antes.

E por que isso é um problema?

Agora, dizer que os remakes live-action da Disney “não funcionam” é uma questão de perspectiva. O que parece mero lixo comercial do ponto de vista crítico é uma maravilha para os executivos que buscam maximizar os lucros.

Embora seja difícil dizer quão bem-sucedidos foram os lançamentos exclusivos do Disney+, aqueles que chegaram aos cinemas tiveram excelentes resultados de bilheteria. E uma bilheteria sólida mantém os cinemas abertos. Controvérsias à parte, será interessante ver se A Pequena Sereia mantém essa tendência.

Dito isso, devemos nos perguntar se, como público, não merecemos filmes melhores. A Disney, antes de se tornar o maior império midiático da Terra, era um estúdio de animação construído com base em sua capacidade de nos surpreender com sua magia. Por que abandonamos nossa capacidade de maravilhamento, nosso desejo de sermos emocionados pelo desconhecido, em vez de sermos envoltos pelo abraço medíocre de uma familiaridade infantilizante?

A Disney fracassou nas bilheterias em 2022 com um filme original e um spin-off (Crédito: Disney)

O pior é que houve tentativas, escassas e fracassadas, de produzir histórias originais por parte da Disney (excluindo os filmes da Pixar, rotineiramente inovadores e propositivos). Embora explicável por muitos fatores, o fracasso da animação Mundo Estranho, uma produção totalmente original do estúdio, foi um dos mais estrondosos de 2022.

Mas, por outro lado, o mesmo aconteceu com Lightyear, o spin-off animado baseado no personagem da saga Toy Story. Isso parece apontar mais para as consequências da disrupção do streaming nas janelas de exibição: se o público não estava tão interessado em pagar o preço do ingresso, era mais fácil esperar 45 dias para ver esses filmes no Disney+.

Nesse cenário, cuja agitação só foi acelerada pela pandemia, a Disney não fez mais do que intensificar seus esforços em sua estratégia de derivar e reciclar. A empresa anunciou Toy Story 5, Frozen 3 e a primeira sequência de Zootopia. Em breve, teremos remakes de Branca de Neve, Lilo & Stitch e até Moana, uma de suas produções animadas mais recentes.

E, novamente: o estúdio mantém essa estratégia porque funciona, ou seja, o público continua fielmente pagando pelo ingresso dessas viagens nostálgicas e sem inovação.

Se quisermos melhores histórias, talvez valha a pena questionar por que ainda estamos presos no mundo dos remakes e sequências, e por que não há espaço para mais originalidade nas telas de cinema, onde os filmes atingem seu indiscutível esplendor.

Nossas compras de ingressos são o voto para decidir o que chega às telas, pois pagamos com nosso dinheiro e, acima de tudo, nosso tempo. Devemos usá-los sabiamente.

Confira o trailer do remake da Disney de A Pequena Sereia:

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